[Minhas criações] #73 - O segundo copo

Um cheiro de terra molhada invade o ar, como um bandido apressado,
quase na mesma hora em que o ploc ploc da chuva começava a se intensificar.
Olhei para o lado de fora, pela janela, e aquele céu cinza me chamou a atenção. Um céu cinza. 
Ou talvez somente o cinza e as nuvens.
Sentia-me totalmente camuflado naquele tempo vazio. 

Coração apertado, de saudade, talvez, ou apreensão.
Fato era que eu gostava da chuva.
Era a desculpa perfeita para se estar em casa
e a garantia de que não teria surpresas.

Neste dia eu me sentia particularmente rejeitado.
Não mais do que nos outros dias,
de uma forma particular, somente.
E o que desencadeara aquilo era tão bobo
que só fazia com que eu me sentisse ainda pior.

A xícara de café auxiliava.
Tornava o cheiro de fim de tarde mais atrativo,
mas não era suficiente para me animar.
Já esperava por isso, mas nunca cansava de tentar aquela alternativa caseira.
Ou talvez eu só gostasse de café e gostaria de tomá-lo naquele momento.

Vestia minha melhor roupa.
Uma que me fazia sentir que eu realmente valia a pena.
Antes de me sentar naquela poltrona, próximo a janela, me olhei no espelho
e aprovei o que vi. Estava pronto.

Bebericava o café sem pressa.
O celular apitava como se estivesse bêbado.
A chuva caía mais forte e de repente eu já não conseguia mais ver o céu como antes
Era só água e barulho. Trovões e relâmpagos.
Ótimo.

Terminei o café e repousei a xícara sobre a mesa.
Foi só então que me dediquei a avaliar o segundo copo que havia minhas mãos.
Era um copo americano repleto de um líquido transparente, de cheiro forte.
No fundo, algumas bolinhas brancas, meio achatadas.
Eu sabia que deveria tomar tudo de uma vez,
só estava reunindo a coragem necessária.

Segurei o copo e aproximei de meu rosto.
O odor alcoólico invadiu minhas narinas me fazendo recuar.
Droga! Pensei.
Além de tudo sou um covarde.

Mas daquela vez eu queria que fosse diferente
e estava decidido a fazer o que deveria ser feito.
Resolvi checar o celular antes de qualquer próximo movimento.
Não havia nada demais, como sempre.
Mensagens em grupos, spam, avisos da operadora.

Sob aquele nome engraçado e estranhamente longo,
havia uma única frase, que alegava saudade.
E, de novo, saudade foi o sentimento que mexeu comigo.
Droga! Exclamei em voz alta.
Menina burra. Pra que sentir saudades?

Levantei-me, irritado, e joguei o copo inteiro na pia
fazendo-o quebrar-se em mil pedaços.
Era a quinto a ter o mesmo destino naquela semana.
Retornei à poltrona e fechei os olhos
me deixando descansar.
A chuva ajudava a acalmar meu coração.
Amo-te!

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